A Frottage de Max Ernst.

Júlia
4 min readApr 28, 2021

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Em uma tarde chuvosa de agosto, em 1925, Max Ernst se percebe observando o piso de sua casa, intrigado pelos sulcos riscados na superfície do material já gasto que o revestia. Ao que diz o próprio artista, colocou-se imediatamente a investigar essa inquietude: sobrepôs uma folha de papel sobre as marcas no piso e então a riscou extensivamente com grafite até imprimir no papel as marcas de desgaste do piso amadeirado. Dessa prática, nascia a frottage, técnica desenvolvida por Max Ernst, em resposta as proposições surrealistas que emergiam na França do século XX.

Desenhos produzidos com a frottage são identificados na obra de Ernst antes mesmo da data que o artista atribui a sua origem, mas consta em seus escritos que o surgimento da técnica está associado com a publicação do Manifesto Surrealista, por André Breton, e as ideias de automatismo, libertação do inconsciente e a primazia da percepção sobre a representação, trazidas no texto.

Ernst pensava que a frottage deveria possuir papel central enquanto linguagem visual do surrealismo, pois a reconhecia como um meio de atingir o modelo interno proposto por Breton. O modelo interno se refere a um método de libertação mental a partir do distanciamento da realidade burguesa (sendo, aqui, a burguesia associada aos valores da representação, os quais se contrapunham aos valores da percepção¹), questionando os limites entre o real e o imaginário. Com a frottage, isso se daria na medida em que a técnica se apropria de objetos táteis mas não realmente os copia ou mimetiza — antes, se vale das sugestões que as impressões suscitam para fomentar a criatividade do artista.

Histoire Naturelle, 1926 — obra editorial de Max Ernst na qual o artista compila seus trabalhos de frottage. | A técnica vai além da simples impressão de uma marca no papel. Nos trabalhos de Ernst, seu uso levava ao desenvolvimento de desenhos complexos no que se refere à composição, textura, volume etc., a partir da junção da impressão de variadas formas ou relevos.

Breton defendia em seu manifesto que a arte deveria romper com o dogmatismo da formula, o modelo externo, e, então, se voltar para a expressão de uma visão interna. Visão interna é o termo usado pelo autor para elucidar a ideia de “ver com a mente” ou a, “visão que já foi capturada pelo pensamento.” Em contrapartida, a impressão ótica diz da assimilação espontânea daquilo que se apresenta à visão, uma imagem pura. Tendo em vista esses conceitos, Max Ernst coloca a frottage como uma prática que unifica a impressão ótica e a visão interna, dado o caráter automático e, ao mesmo tempo, de registro da técnica.

Tida como desenho semiautomático, a frottage se classificava tal qual a escrita para os surrealistas. O caráter cursivo da escrita ou do desenho automático se aproximam mais da manifestação ou do registro, da captura dos pensamentos e do conteúdo do inconsciente de forma pura — um fluxo expressivo que caracteriza aquilo que Breton chamou de unidade rítmica. Sendo assim, a frottage não compõe uma imagem fabricada, cujo sistema de signos fora reorganizado pela representação que, por sua vez, corromperia a pureza da imediatez da impressão visual.

O Beijo, 1922, Raiografia por Man Ray | A raiografia é uma técnica fotográfica, de autoria atribuída à Man Ray, que consiste na sobreposição do papel fotográfico sobre o(s) objeto(s) fotografado(s) exposto(s) à uma iluminação direta, de forma a sensibilizar o papel, imprimindo a silhueta do(s) objeto(s) sob ele dispostos.

Ainda, é possível traçar um paralelo com a raiografia, por evocar percepções semelhantes as da frottage. Sendo a primeira pertencente à linguagem fotográfica, possui a mesma força marcante, na medida em que imprime os objetos por debaixo do papel fotográfico sob uma áurea psicológica, da qual suscita as associações ao fantasmagórico. Mesmo Man Ray, autor da técnica em questão, a confere ao campo da memória — “lembram com menor ou maior clareza os acontecimentos, como cinzas intactas de um objeto consumido pelas chamas.”²

Dessa forma, a forttage se insere em meio ao contexto das linguagens e técnicas novas impulsionadas pelo surrealismo. Seu caráter automático a coloca em contato direto com o inconsciente e os desdobramentos de sua produção abraçam os ideais do movimento, que identifica na frottage uma ferramenta de expressão da percepção visual pura e imediata, associando-a com os valores do ato fluído da escrita.

Notas:
1. Uma questão relevante para o manifesto surrealista, a primazia da percepção sobre a representação conduzia o movimento liderado por Breton em direção à supervalorização da visão em detrimento dos demais sentidos. A visão estava ligada ao automatismo da percepção, assim como ao puro, natural, selvagem e ao imediato. Em contrapartida, a representação, associada à escrita e aos processos mentais era assimilada à repressão. Mais adiante, porém, o autor se contradiz ou obscurece suas afirmações anteriores ao defender o automatismo psíquico, da ordem da representação, e renegar a percepção visual.

2. Man Ray, Exhibition Rayographs 1921–1928 (I.G.A. Stuttgart, 1963).

Bibliografia:
KRAUSS, Rosalind. Fotografia e Surrealismo. In: KRAUSS, Rosalind. O Fotográfico. Local: Gustavo Gili, 2012, p.105–p.129

LOYE, Tobias P. Z. HISTORY OF A NATURAL HISTORY: MAX ERNST’S HISTOIRE NATURELLE, FROTTAGE, AND SURREALIST AUTOMATISM. 2010. 154(p) — University of Oregon, 2010, Eugene.

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